sexta-feira, 20 de julho de 2012

“Ser preso, torturado, morto pela causa nacional era um orgulho”

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MatiasMboaMatías Mboa, tal como muitos militantes da Frelimo na luta pela libertação nacional, teve uma trajectória espinhosa. Conquistou o conhecimento académico e filiou-se à Frelimo, chegando a ocupar o cargo de chefe da 4ª Região Militar, após treino na Argélia. Mas, cedo, 1964, foi parar às celas da Machava, numa experiência em que a dor e a tortura eram a regra, mas vencidas pela certeza da causa.
Quem era Matías Mboa antes de se entregar à causa nacional?
Matías Mboa era um simples cidadão moçambicano, nascido em Bobole, de pais humildes, trabalhadores e que, concluído o curso de professores no Alvor, veio a Maputo à procura de emprego. Só que compreendeu que aqui havia necessidade de continuar a trabalhar e a estudar. Então, à noite, matriculou-se num explicador, o Dr. Azevedo, e com ele veio a encontrar-se com outros companheiros, entre os quais Samora Machel, com quem desenvolveu forte amizade e a abandonou o país para a Tanzania.
Quando desperta em si esta consciência política, este desejo de se unir aos outros moçambicanos que já estavam neste processo de luta contra o regime colonial?
Acho que, para mim, como para muitos moçambicanos, o nacionalismo moçambicano começou a ter raízes, mais ou menos, na década 50. Para outros países, foi logo após a II Guerra Mundial. Mas aqui em Moçambique, digo francamente, começou a notar-se depois da vinda do Dr. Mondlane. Muitos moçambicanos que tiveram encontro com o Dr. Mondlane compreenderam que havia necessidade de continuarem a estudar, com dificuldade ou não, tinham que continuar a estudar. A partir dali, muitos moçambicanos trabalhavam de dia e de noite iam estudar. Isso é o que sucedeu comigo, com o camarada Samora e com muitos outros companheiros com que convivi aqui em Lourenço Marques, na altura.
Teve algum convite formal para fazer parte da Frente de Libertação de Moçambique ou foi uma entrega espontânea?
Diria que foi uma entrega espontânea. O que posso dizer, talvez para compreender melhor, é que a independência do Gana, do Congo e de outros países africanos começou a despertar no povo moçambicano a necessidade também de se tornar independente (por que é que continuaríamos a viver sob dominação colonial? Nós também tínhamos que lutar para nos tornarmos independentes) e isso, digo, foi fortificado pela conversa que alguns moçambicanos tiveram com o Dr. Mondlane, em 1961.
Terá sido exactamente nessa altura em que desenvolveu essa consciência política para, muito rapidamente, tomar parte nesse movimento e começar a desencadear acções com vista a pôr fim ao regime colonial?
Diria que sim, porque uma das pessoas que se teria encontrado com o Dr. Mondlane foi o camarada Samora. E como fôssemos amigos, íamos comentando do que havíamos falado com o Dr. Mondlane, e, mais do que isso, no nosso regresso da explicação, comentávamos sobre aquilo que ouvíamos nas emissoras africanas, na Rádio Moscovo, e fomos ganhando consciência. fomos compreendendo que, afinal de contas, a nossa obrigação era também de procurarmos lutar para a nossa independência.
Armando Pedro Muiuane diz, na sua obra “Datas e Documentos da Frelimo”, que em Agosto ou Setembro de 1964 recebeu-o em sua casa, ido da Tanzania, com um bilhete de Samora Machel a solicitar alguns livros que falavam sobre o indígena e mapas de povoações de Moçambique. O que significava ser portador deste tipo de informação no contexto da luta de libertação nacional?
Era uma missão a cumprir. Nós, quando chegámos a Tanzania, tivemos um encontro com o Dr. Mondlane, que quis saber qual era o nosso objectivo ao abandonarmos Moçambique. Nós dissemos que o nosso maior objectivo era de estudar, mas ele fez-nos perceber a necessidade que havia de ingressarmos nas fileiras militares, portanto, aceitar a preparação militar para o combate pelo nosso país. Ora, a partir dali, começámos a compreender que isso era mais do que uma ordem; compreendemos que era aquilo a que chamo a voz sagrada do povo. A partir do momento em que você aceita uma causa nobre como esta, todos os perigos deixam de o ser, deixam de ter a sua força, deixam de criar medo em si. Para si, tudo o que seja para satisfazer a vontade do povo é sagrado. Portanto, não havia nenhum perigo em levar esses documentos.
Tendo em conta esta ausência de medo, o que é que significava ser um guerrilheiro na clandestinidade perante uma PIDE que actuava de forma muito severa?
O que sentíamos era que ser preso, ser torturado, ser morto, mas pela causa nacional, para nós, era um orgulho. É, por isso, que até nos treinos militares entoávamos canções, é pena não ser moçambicana, é do ANC, “Ozima, ozima le muthuana, ufuni madoda”, que dizer, “é difícil, é difícil esta tarefa, mas precisa de homens e esses homens somos nós”.
O seu livro “Memórias da Luta Clandestina” inicia com palavras de dor, angústia, harmonizadas no seguinte verso: “quero esquecer-me de ti, Machava!/ quero apagar as tristes recordações que em mim deixaste./ quero acreditar de novo no futuro/ mas não consigo./ Machava, tu destruíste a minha vida/ tu apagaste a grande chama da liberdade, de entusiasmo que em mim ardia/ tu implantaste, no meu coração, um novo ego/ que nem eu próprio me conheço/ quem sou eu...?/ quem sou eu...?/ mas quem sou eu com tanto medo, com tanta indiferença?/ quem sou eu?”...
Com isso quero dizer que a tortura submetida a um preso político era bastante forte. Bastante forte que, não há dúvida, chegava certa altura que dizia: “valerá a pena continuar nas fileiras da Frelimo?” Isso tudo devido às torturas a que a pessoa era submetida, mas, evidentemente, que dizia: “Bom, eu jurei, jurei lutar pela minha pátria, suceda o que suceder, tenho que avançar”.
Como é que chegou a essa dura experiência da vida prisional?
Cheguei à triste experiência que tive, como teria dito, depois dos treinos militares. Fui enviado à Suazilândia como representante político da Frelimo. Mas, quando começa a luta de libertação nacional, fui indigitado chefe operacional da Quarta Região Militar, que englobava as províncias de Lourenço Marques, Gaza e Inhambane. Eu teria recebido, na altura, uma carta, também, por intermédio de Luís Bernardo Honwana, escrita pelo camarada Joel Maduna Xinana, que era o comissário político da Quarta Região Militar, na qual dizia para receber os guerrilheiros. Só que, chegado à então Lourenço Marques, no encontro que tive com o camarada Joel Maduna Xinana, constatei que todos os guerrilheiros que vinham com ele tinham sido presos. Foi quando, então, combinámos que “companheiros, aqui em Lourenço Marques não há nada que podemos fazer. O que podemos fazer é abandonar Lourenço Marques para a Suazilândia, onde, mais ou menos, podemos preparar os nossos jovens para substituir os guerrilheiros que já foram presos”. Mas, infelizmente, na noite em que me separei do Joel Maduna Xinana, o motorista que me levou para a base no2 teria recebido uma oferta, por parte dos portugueses, de 200 contos pela cabeça de Mboa, vivo ou morto.
Era o seu amigo Floriano da Silva?
Não só era meu amigo, era o indivíduo que nos havia facilitado a travessia Lourenço Marques – Ka Tembe, na fuga com o camarada Samora Machel. Portanto, era uma pessoa que vínhamos trabalhando com ela e, mais do isso, era uma pessoa de família, na medida em que se tinha casado com a prima de Samora Machel. Portanto, era um indivíduo com o qual trabalhava com todo o à-vontade, mas que, infelizmente, me traiu.
O que significou essa traição, tendo em conta que a mesma pessoa que o traiu poderia levar, também, para as mãos da PIDE outros elementos que faziam parte dessa luta clandestina?
Aliás, já nos tinham alertado que essa era a tarefa do Floriano da Silva. Só que estávamos convencidos que se ele jurou trabalhar para a Frelimo, não poderia trair-nos. Ele fazia isso com os madeirenses que chegavam aqui à procura da África do Sul. Uma parte desses madeirenses mandava-os prender. Os outros fazia-os atravessar a fronteira para a África do Sul. Mas há diferença entre lidar com madeirenses e com aquilo que sabe que é para a sua própria libertação, a sua própria independência. Portanto, estava convencido que ele nunca ia trair.
Descreve, também na sua obra, uma cadeia horrorosa, cheia de pavilhões monstruosos, onde não ouvia senão o grito horripilante de presos, ora caindo de fome, de torturas, ora rezando, pedindo a Deus não a vida, não a liberdade, mas a morte, para o seu eterno descanso...
Eu diria que isso mesmo se passou comigo. Quer dizer, as torturas eram tão fortes, tão fortes que a pessoa preferia morrer a continuar a viver. Por isso que eu diria que, das várias vezes que rezava, rezava não para deixar de ser preso, mas sim para morrer. Só que, evidentemente, a morte é um pouco traiçoeira, quando a gente a pede, ela foge. Nunca aceita vir para nós, ela vem sorrateiramente, quando muito menos esperamos, surpreende-nos. Mas, naquela altura, se alguém me perguntasse o que é que preferia, diria que preferia morrer.
Era o único a desejar a morte?
Não era o único, éramos quase todos nós, em face das torturas de que éramos alvo.
Fora as torturas, também descreve que viveu em condições muito desumanas. ainda assim, parece que a doença andava bem distante das celas da Machava.
Sim, basta ver, por exemplo, este caso - um indivíduo era metido numa cela disciplinar. O que é uma cela disciplinar? Uma cela disciplinar é uma cela talvez de um ou dois metros por um ou dois, e nela você tem a sua retrete, tem o seu dormitório, tem o seu refeitório, tem tudo. Aqui fora, qualquer vez que você vai à casa de banho lava as mãos com sabão, mas ali não, onde é que vai apanhar sabão? Limita-se pura e simplesmente a lavar-se e a lavar as mãos; levam-te comida, não tens colher, não tens nada. Em circunstâncias normais, diria que este homem vai apanhar uma doença qualquer, uma diarreia, uma cólera, mas evidentemente que nós costumamos pensar que Deus só dá doença onde há remédio. E como não havia remédio, não me lembro de ninguém que tenha apanhado cólera ou diarreia, precisamente por falta de sabão.
Escreve no seu livro, página 31, que a detenção dos oito guerrilheiros da Frelimo não representou o fim da guerrilha, mas sim avivou o fogo do nacionalismo moçambicano. Como é que prosseguiram as acções contra o regime colonial, com este núcleo duro da guerrilha detido?
Quando ficámos presos, sobretudo eu e Joel Maduna Xinana, praticamente dir-se-ia que a Quarta Região também desapareceu, porque muitos membros que pertenciam à Quarta Região haviam sido detidos, em 1964. É o caso do Adnércio Sansão Muthemba, Abiatar Sansão Muthemba, Rogério Ndjoa, Rodrigues Tchale, Júlio Sigauque, Paruque, Paulo Litsure e muitos outros companheiros. Ora, depois da nossa prisão, a PIDE convenceu-se que já tinha conseguido silenciar a rebeldia existente aqui no Sul, tanto mais que publicou no jornal Notícias ter conseguido esmagar a insurreição armada. Só que os jovens também pertencentes à clandestinidade quiseram fazer-lhes entender que não, a prisão dos nossos chefes não representava, de forma alguma, o desaparecimento da coisa. Foi nessa altura que houve um envolvimento de muitos membros e simpatizantes da Frelimo para a distribuição de panfletos, bandeiras da Frelimo, para passar mesmo esta mensagem de que continuavam firmes na luta(...). Com certeza, foi nessa altura em que Ângelo Chichava, Armando Guebuza, Lucas Banzime, Mazuze e António Sumbana decidiram juntar-se a todos os outros membros da clandestinidade, jovens que se encontravam em Lourenço Marques, Gaza e Inhambane. Jovens quer do sexo masculino, quer do sexo feminino tomaram a decisão de espalhar panfletos pelas cidades de Lourenço Marques, João Belo, actual Xai-Xai, e Inhambane, Maxixe.
E como é que era feita a mobilização dos jovens para aderirem a este movimento?
Não, eles já eram membros da clandestinidade. Todos eles pertenciam à Quarta Região. Só que, com a nossa prisão, os camaradas Ângelo Chichava e Armando Guebuza assumiram o comando das operações e mobilizaram a juventude.
Estando na prisão, como é que conseguiam ter um algum tipo de participação com vista a garantir que essa sede, essa chama de ver o país independente, não morresse?
Quando começámos a trabalhar na clandestinidade, invadimos quase todas as áreas, mesmo na PIDE, tínhamos os nossos elementos. Por exemplo, quando fiquei preso, a pessoa que foi avisar o comissário político, Joel Maduna Xinana, de que eu estava preso e que devia fugir era um agente da PIDE...
O único homem que é descrito como sendo a imagem negra desta etapa da vida de todos os que passaram pela cadeia da Machava naquele período é Chico Feio. Por que razão este apelido Feio e por que era a favor do regime colonial, em detrimento da causa dos seus compatriotas?
Sempre há traidores numa sociedade. Agora, Chico Feio, é porque, de facto, era muito feio. E julgo que no meu livro descrevo a figura, o aspecto físico, os dentes amarelos, a pele a escamar-se e, depois, era muito escuro. Quer dizer, nem parecia moçambicano. Tudo isso levou a que o povo lhe chamasse feio. Agora, quanto ao nome Chico, era o nome dele. Francisco Langa era o nome dele, Chico era o diminutivo.
Esse homem deixou marcas muito profundas em quase todos os que foram detidos naquela altura...
O Chico torturava-nos com prazer. Para ele, matar, torturar um preso político era um prazer. É difícil compreender o que é que o movia para aquelas acções (...). Não conheci Adolfo Hitler, não sei se ele teria sido soldado de Hitler, não sei. O certo é que ele tinha prazer de torturar.
Durante os anos em que esteve preso, como é que obtinha informações sobre as acções que a Frelimo estava a desencadear?
Nós estávamos melhor informados do que quando estávamos fora da prisão. Os melhores jornais do mundo chegavam até aos presos políticos e, bastava entrar um, corria pelas celas.
Chico não criava nenhuma barreira?
Evidentemente que ninguém entrava com jornal. Era proibido entrar com livro, jornal, mas as nossas famílias faziam todo o possível para nos levarem esses meios de informação.
Qual foi o momento mais marcante que guarda da altura em que esteve nas celas da Machava?
Não sei se terei um momento melhor na cadeia, mas o que guardo para mim foi quando o chefe da cadeia veio abrir a minha cela e disse “prepara-se para receber uma notícia triste”, e eu disse, “bom, estou preparado”. Então, ele disse: “Morreu o teu pai” e fechou a porta. Confesso que naqueles segundos, talvez não tenha sentido a gravidade da informação que me davam, mas passado algum tempo, a coisa começou a vencer-me, comecei a sentir que o meu pai tinha morrido... posso dizer que concorri para a morte do meu pai, na medida em que quando fui preso, ele foi torturado pela PIDE.
Foi por essa razão que, mesmo estando escondido, teve de aparecer para evitar um cenário pior?
Sim, para evitar a tortura do meu pai, preferi entregar-me. Os meus irmãos que estavam a estudar, por exemplo, um deles estava no seminário, o Henriques Mboa, foi expulso, porque descobriram que era meu irmão. Mas, mais do que isso, quando fiquei preso, a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos foram levados para Marracuene (...), sofreram muito por minha causa. A única consolação que tinha era de que são moçambicanos e tinham que sofrer. Sofreu o meu pai como sofreu o teu pai, tio e avô. Todo o povo moçambicano sofreu por causa da colonização portuguesa.
O PAÍS 13.03.2012

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