quarta-feira, 10 de julho de 2013

A outra face da greve dos médicos não abordada pelos medias

A outra face da greve dos médicos não abordada pelos medias

Correspondênci@ Electrónic@
Por: Joaquim Pita *
Reflictam comigo as constatações que a seguir apresento.
Na nossa legitima reivindicação, embora muitas vozes nos tenham dito que temos razão, continuo pensando que a maior parte dessas vozes não sabe ao concreto o que se passa aqui dentro do sistema.
Na verdade os mesmos nossos chefes que nos chamaram de agitadores e que pintaram de colorido a situação sabem que o sistema encontra-se gravemente doente.Trata-se de um sistema que há anos vive de improviso e de mentiras.
O problema que salta a vista de muitos analistas pouco esclarecidos é o assunto de salário, mas esse não é o único problema que o sector enfrenta, pode estar na lista dos mais graves problemas que tem que ser resolvido com urgência.
Pensem comigo no seguinte:
Quando é que foi a última vez que o colega recebeu uniforme do sistema? Eu lembro-me muito bem, recebi pela primeira e única vez emJunho de 2006, nessa altura o Ministro da Saúde ia visitar o distrito onde eu estava colocado, deram-me uma camisa, um par de sapatos, calças  e um cinto.
Sempre que peço fardamento, este não existe para medicos nem para enfermeiros e nos aconselham a adquirir com meios próprios. Resultado: O que nós estamos a usar no sistema de saúde não é uniforme, é sim roupa branca mas está longe de ser uniforme.
Já vi situações caricatas. Nessa coisa de cada um adquirir uniforme com meios próprios conheço uma enfermeira que adquiriu uma bata que sempre que vejo só me faz rir, tem o formato de uma jaqueta (sem mangas), comprida que vai até pouco abaixo do joelho. Perguntei onde comprou disse “encontrei na calamidade, como eu não tinha bata e aqui não dão, paguei dez meticais, mas é branca não é?”. Claro que é branca.
Ela não é única que tem bata das calamidades. Um outro técnico de medicina comprou uma bata até que é bonita mas vem com as seguintes escritas timbradas no bolso “Dr. Hellen Jefferson – Police Dog Training Specialist”.
Para começar este tipo é homem e parece que o nome da bata dele é de uma mulher. Não sei muito de inglês mas parece que na bata dele tem algo a ver com cães de polícia.
Eu não sei qual é a relação que ele tem com esses cães, mas a bata dele é branca.
Uma colega de SMItem no timbre do bolso da bata dela  os  seguintes  dizeres:  “Joseph  Moor  – ESA  research Dpt”. Curioso, fui a net, pelo Google procurei o que é isso de ESA e me disseram “European Space Agency”, ou seja, Agência Espacial Europeia, o equivalente a famosa NASA americana… A bata desta colega também é branca, só não sei o que ela tem a ver com a agência espacial europeia.
Também salta-me a vista esse uso de identidade alheia. Não consigo digerir estas barbaridades todas. Uns mais cautelosos depois de comprar as batas nas calamidades tem o cuidado ou de remover o bolso ou as vezes colar com uma fita adesiva para não mostrar o timbre.
Vocês acreditam que estes colegas com timbres de instituições que nada tem a ver com o estado moçambicano, são funcionários deste estado?
O que é que o estado pode fazer para parar com esta vergonha?
E porque não faz?
Não é este mesmo Estado que quando vai a uma fábrica de um privado, encontra trabalhadores não equipados passa multas avultadas?
Porque passa multas aos outros sabendo que ele próprio não consegue equipar os seus funcionários?
Quantas vezes colegas já prescreveram Ringer à uma criança com desidratação grave, e a enfermeira te disse: “Dr.,não temos Ringer, posso dar dextrose?”
Quantas vezes já algaliaste alguém com Sonda Nasogastrica? Quantas vezes já usaste algalia como SNG?
Quantas vezes já amarraste uma luva na extremidade de uma sonda para recolher líquidos corporais como se tratasse de um saco colector?
Quantas vezes já prescreveste um medicamento  e no dia seguinte encontras uma bolinha no cardex?
Quantas vezes já disseste ao doente “isso é um abcesso, precisamos de drenar mas…  tens que ir comprar uma lamina e trazer?”
Quantas vezes já disseste… “não temos seringas, mas se conseguires na farmácia privada podes comprar nós vamos te aplicar a medicação?”
Quantas vezes já disseste à uma mãe, “teu filho precisa de apanhar este tipo de medicamento, mas aqui não tem, vou passar-te uma receita vais comprar na privada  e entregas a enfermeira para aplicar?”
E… em voz baixa, quantas vezes já espreitaste o canal vaginal da tua paciente com ajuda da lanterna do teu celular?
Onde está a lanterna ginecológica?
Quantas vezes já assinaste uma requisição de medicamentos e mais de metade vem com a seguinte sigla -NHA (não há)?
Quantas vezes a tua parteira já guardou plásticos de embalagens  para receber bebés no parto por falta de luvas?
Quantas vezes?
Quantas vezes já o enfermeiro disse “vão para casa, não temos material esterilizado, temos poucas pinças voltem amanhã para fazer os vossos pensos”?
A tua consulta pré natal tem aparelho de TA completo e funcional?
Tens glucómetro no teu gabinete?
Pergunte-me durante quanto tempo fui recomendado a fazer 2DFC a doentes que deviam estar a fazer 4DFC no tratamento de tuberculose, porque o 4DFC não havia.
E os mesmos dizem-se preocupados com MDR…
Tens tido blocos de receituários ao longo do ano?
Eu não… estou cansado de escrever em papel de kaki rugo so, e modelos de guias de transferência? E livros de registo diversos?
Você já viu meningite confirmada a ser tratada com cotrimoxazol 240/5 suspensão oral numa enfermaria? Eu já vi e o desfecho foi esse mesmo que estás a pensar. Isso porque não havia nenhum injectável…
Agora eu pergunto: até quando vamos continuar a improvisar tudo?
É POSSÍVEL UM SISTEMA INTEIRO VIVER DE FAZ DE CONTA?
Entramos no sistema encontramos a se improvisar e continuamos a improvisar, mas isso não é o normal, apenas nos habituamos, mas NÃO É NORMAL...■ (* Médico Anónimo)
O AUTARCA – 09.07.2013

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