quinta-feira, 28 de agosto de 2014

As Baleias do Vigário, ou: Como por no Lixo um Santuário

 

28/8/2014 14:13
Por José Truda Palazzo - de Brasília

O Brasil vem tentando aprovar na Comissão Internacional da Baleia a proposta de um Santuário de Baleias para o Atlântico Sul
O Brasil vem tentando aprovar na Comissão Internacional da Baleia a proposta de um Santuário de Baleias para o Atlântico Sul
A área ambiental do atual (des)governo Dilma não está imune ao padrão que caracteriza de maneira indelével a atual gestão: fazer a máquina da mídia estatal contar mentiras com tanto triunfalismo que até gente boa acredita ser verdade. É assim que uma gestão que nada relevante fez pela conservação das espécies ameaçadas de grandes baleias tem a cara de pau de colocar na rua uma matéria como a publicada pelo Ministério do Meio Ambiente na última semana, intitulada Países Propõem Plano de Gestão para Santuário de Baleias, tão mentirosa que (a) não há “países”, (b) não há proposta de Plano de Gestão, e (c) não há Santuário. Passo a explicar, porque está é apenas a gota d´água do manejo ao mesmo tempo incompetente e de má-fé deste assunto, em que o nada fazer vira propaganda de avanços significativos que simplesmente não existem senão como invencionice eleitoreira engendrada por burocratas irresponsáveis e seus cúmplices – sempre os há – no meio acadêmico que parasita os gabinetes de Brasília em busca de migalhas para seus projetos pessoais.
Há bem mais de uma década, o Brasil vem tentando aprovar na Comissão Internacional da Baleia a proposta de um Santuário de Baleias para o Atlântico Sul, como forma de complementar a proteção oferecida, desde 1994, pelo Santuário do Oceano Austral. Apesar de o Japão ter até o ano passado continuado a matar baleias neste Santuário, sob o falso pretexto de “pesquisa”, uma decisão recente da Corte Internacional de Justiça ordenando aos japoneses a suspensão da matança reforçou a importância dos Santuários da CIB como ferramenta para afastar a caça comercial de baleias de regiões inteiras.
Para que uma proposta como essa seja aprovada, é preciso seguir alguns ritos da anacrônica e emperrada Comissão, dentre eles a apresentação de uma proposta formal ao Comitê Científico, o que foi feito sucessivamente pelo Brasil e seus países aliados (em particular a Argentina) em anos passados. Em 2005, fui encarregado de coordenar a revisão desse documento, que contou com a participação de pesquisadores de cinco países e constituiu a base para a campanha em favor da proposta desde então.
Por melhor que seja a proposta, entretanto, ela não será aprovada sem um trabalho diplomático e político muito vigoroso e que precisa chegar aos mais altos níveis de governo, pela simples razão que o Japão detém, através de ameaças e propinas notórias, um bloco de “países-marionetes” na CIB – incluindo algumas das economias mais pobres e vulneráveis da África, Caribe e Pacífico – uma minoria capaz de bloquear os ¾ de votos exigidos pela Comissão para aprovar uma medida dessa envergadura.
Verdade seja dita, os governantes brasileiros nunca priorizaram a atuação na CIB ou a proposta do Santuário a ponto de fazer todas as gestões necessárias para sua aprovação. Mesmo assim, um trabalho diligente do pessoal de base do Ministério das Relações Exteriores, que tinha no embaixador Marcos Vinicius Pinta Gama nosso Comissário para o tema, apoiado pelas ONGs brasileiras e latino-americanas, fez com que chegássemos a 65% dos 75% necessários para a aprovação, em 2012. Era o momento de vitaminar politicamente a proposta, fazer as gestões necessárias, e correr para festejar o gol.
De lá para cá, a coisa desandou, graças em grande parte ao absurdo descaso e à incompetência do Ministério do Meio Ambiente. Em reunião realizada no Itamaraty há pouco mais de dois anos, justamente para delinear estratégias para lograr a aprovação do Santuário, o representante do MMA prometeu mundos e fundos; entre outras coisas, revisar a proposta técnica do Santuário, e engajar o Ministério em uma vigorosa campanha internacional pela proposta.
A revisão técnica criteriosa do documento simplesmente não aconteceu. Estourados todos os prazos para apresentar a revisão este ano ao Comitê Científico da CIB, o MMA fez uma gambiarra no estilo copiar-colar sobre o nosso documento de 2005, ajudando a alimentar as críticas do Japão à proposta. Em março passado, o Instituto Baleia Jubarte organizou com apoio da Petrobras um Seminário Internacional sobre a proposta, para o qual se conseguiu trazer um número expressivo de delegações da África e Caribe com a intenção explícita de angariar mais apoio para o Santuário. Mais uma vez o MMA fez figuração e muito estardalhaço, e a Ministra prometeu, de novo, mundos e fundos, inclusive acenando com sua participação pessoal na próxima Plenária da CIB, em setembro.
Depois desse evento, nada foi feito de útil: preferiram nossos burocratas partidários aproveitar o interregno para “festejar” no plano doméstico, com mais releases triunfalistas, a mudança de status de ameaça da baleia jubarte, para o que, todos sabemos, o regime atual não contribuiu em nada, pelo contrário recusando-se categoricamente a ampliar a proteção do Banco dos Abrolhos, área essencial para a reprodução da espécie no Atlântico Sul.
A realidade, a meras três semanas dessa Plenária que decidirá sobre a proposta do Santuário do Atlântico Sul? O Brasil não apenas não fez seu dever de casa político, ou seja, as gestões de alto nível com os demais governos para assegurar os votos necessários foram esquecidas; o eficiente Comissário brasileiro Pinta Gama foi deslocado para servir como nosso Embaixador na Suécia, deixando acéfala nossa representação; e no momento em que escrevo sequer o Brasil pagou sua cota anual à CIB, estando ameaçado de não poder votar na própria proposta!!!
Em meio a esse verdadeiro caos é que o MMA decide gastar tempo e dinheiro em uma pirotecnia não apenas inútil como daninha. A reunião improvisada em Brasília para gerar o release mencionado no início deste texto e fazer cortina de fumaça para sua inação e incapacidade de atuar estrategicamente na CIB reuniu “pesquisadores” em sua maioria desconectados totalmente da atuação brasileira pelo Santuário, mas dóceis à manipulação stalinista do regime, e mais um ambientalista não-governamental uruguaio de respeito, o biólogo Rodrigo Garcia, que estava a passeio na Praia do Forte e foi engambelado para ser usado como pretexto de dizer que “países apoiarão” uma ação do Brasil. E o tal Plano de Gestão mencionado NÃO foi elaborado na reunião. Pior, a Argentina, parceiro vital da proposta, não foi convidada a tempo, o que dizem ter deixado irritadíssimos os habitualmente discretos diplomatas do país vizinho. Ou seja, estamos diante de uma completa e deslavada enganação, enquanto as ações realmente necessárias à aprovação do Santuário simplesmente não acontecem, por absoluta falta de priorização na agenda do atual (des)governo.
O Brasil irá à Plenária da CIB em Setembro totalmente despreparado para defender a proposta do Santuário de Baleias do Atlântico Sul, e é praticamente certo que ela não seja aprovada. Os 65% de votos da última tentativa dificilmente serão alcançados em uma nova votação se não houver um imenso esforço de última hora, que parece impossível dado esse estado de coisas em que talvez nem nós mesmos tenhamos direito a voto. O que nos resta diante de tanto descalabro? Ao menos não deixar passar em branco, e aprender a não confiar nos releases estatais de meio ambiente desse regime que nos assola e que agora está por enterrar nossa atuação na última área internacional ambiental onde ainda tínhamos alguma credibilidade.
é consultor em meio ambiente, ex-Vice-Comissário do Brasil e ex-Chefe da Delegação Científica brasileira junto à Comissão Internacional da Baleia.



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