terça-feira, 28 de outubro de 2014

Cartas de M’telela (1)

Cartas de M’telela (1)
Após os «julgamentos populares» de Nachingwea realizados de Abril a Maio de 1975, a Frelimo transferiu para o campo de reeducação de M’telela o chamado "grupo dos reaccionários", que incluía o casal Simango, Adelino Gwambe, Raúl Casal Ribeiro, esposa e filhas, Joana Simeão, Paulo Gumane, João Craveirinha, Calisto Makuluwe, Judas Honwana, entre outros. Foi em Novembro desse ano que o grupo partiu de Nachingwea em camiões do exército tanzaniano em direcção ao Lago Niassa, e depois numa embarcação com destino à Base Naval de Metangula, já em território moçambicano. Da base naval, o grupo foi levado por estrada em direcção a M’telela, local de um antigo aquartelamento do exército português, outrora conhecido por Nova Viseu.
O contacto dos presos políticos com os familiares começou por ser intermitente, cessando por completo anos depois. Não podiam indicar o paradeiro exacto onde se encontravam. "Província de Niassa" era tudo quanto podia constar das missivas, ou então "Centro de Reeducação" apenas. A correspondência era censurada pelo Governo Provincial do Niassa. Numa carta de Celina Simango endereçada ao filho, Lutero Simango, as autoridades provinciais tiveram o desplante de afixar no verso do sobrescrito um carimbo com os dizeres "República Popular de Moçambique – Governo da Província do Niassa – Lichinga", como se se tratasse de um novo tipo de franquia postal. Não apenas violava a correspondência, como também a retinha por longas semanas. Uma carta do Reverendo Uria Simango datada de 15 de de Fevereiro de 1976 apenas foi expedida de Lichinga a 21 de Março, como atesta a franquia dos correios da capital provincial.
Das cartas que o casal Simango escreveu aos filhos, evidencia-se a preocupação natural de todos os pais: o reverendo pelo estado de saúde e dedicação aos estudos dos três filhos; a mãe, deixando transparecer carinho e saudade por aqueles que, inespearadamente, a viram partir da Beira pela mão de guerrilheiros da Frelimo transportados em viatura do MFA.
É esta a primeira carta que o Reverendo Simango terá sido autorizado a escrever aos filhos depois de ter chegado a M’telela:
Província do Niassa
15 de Fevereiro de 1976
Nossos filhos:
Mauka
Mbhepo
Mbiyo:
Passaram três meses sem vos escrever, nem receber vossas cartas. Podem imaginar quanto necessitamos de saber o vosso estado de saúde. Recebemos a carta que continha a foto do Mbiyo, ainda em Nachingwea.
Escreveram-nos que Déviz e Mauka passaram os seus exames. Não sabemos se o Mbiyo chegou também de fazer os seus. Interessa-nos bastante saber em que classes estão matriculados neste ano.
Como viemos a dizer, o Mbiyo deve estar matriculado numa escola, isto sem falta, ao contrário é perca de tempo.
Saímos de Nachingwea para cá nos fins de Novembro do ano findo.
Mamã e eu estamos de boa saúde.
Mandamos muitos cumprimentos para vós e para todos.
O vosso pai,
Uria Simango
— com Julie Sá e Losábio Jacinto Maricôa.

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