segunda-feira, 24 de abril de 2017

O real propósito da cartelização da Justiça

Editorial - 

Na semana antepassada, já praticamente no fecho da nossa edição, chegou-nos à mão um documento do Conselho Superior da Magistratura Judicial que oficializa a expulsão de dois magistrados judiciais, sendo um deles a juíza afecta ao Tribunal Judicial do distrito de Marracuene, na província de Maputo, a Dra. Judite Mahoche Simão. Juntamente com a juíza de Marracuene, vai para casa o juiz do Tribunal Judicial da província de Manica, Roberto Eugénio Balate.
O documento de 46 páginas do Conselho Superior da Magistratura Judicial, que é vocacionalmente órgão de disciplina da magistratura judicial, tem muito por onde se lhe pegue, por traçar um quadro absolutamente calamitoso na magistratura judicial. Um documento que, por si, reivindica uma limpeza séria na classe dos juízes, uma limpeza inadiável para a salvação nacional da Justiça.
Mas vamos por partes e comecemos pela juíza Tribunal Judicial do distrito de Marracuene, a famosa juíza Judite. Congratulamo-nos com a expulsão da senhora da magistratura por, tal como tivemos a oportunidade de aqui denunciar e provar, não reunir qualquer tipo de condição para ser juíza. Mas é preciso que se diga que a senhora Judite Mahoche Simão foi expulsa não porque o que fez tenha arrepiado de forma unânime e inequívoca a cúpula do Conselho Superior da Magistratura Judicial.
No nosso modesto entender, e pelo enredo que tivemos a oportunidade de acompanhar a par e passo, a juíza só foi expulsa por duas razões, em ordem hierárquica, que actuaram em concurso: por não ter aceitado uma pena leve, que era a de transferência para o distrito do Búzi, na província de Sofala; e por ter afrontado por duas vezes uma decisão do órgão. Não foi necessariamente expulsa pelo que fez no Tribunal.
É que, até onde o “Canal de Moçambique” sabe, e segundo fontes do próprio órgão, o Conselho Superior da Magistratura Judicial até estava disponível para fazer vista grossa à gravação demolidora. Mas o ponto é que a juíza não encontrou legitimidade no órgão e decidiu afrontá-lo, recusando cumprir a deliberação 180/ CSMJ/CP/2016, de 20 de Outubro, que a transferia para o distrito do Búzi. Mas, na primeira recusa, que foi feita através de um recurso, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, ainda assim, quis continuar com a juíza, mantendo tal deliberação, mas a juíza decidiu enveredar por uma exibição musculosa, recusando-se, de todo, a ir para o Búzi. Em alguma  coisa a mais a juíza confiava.
E com o caldo, cá fora, já entornado, entre toda a magistratura e uma juíza apanhada em contrapé, o Conselho teve de escolher pelo mais barato, para suportar os custos de uma imagem que, por si, já há muito que anda pelas ruas da amargura.
Não deixa de ser curioso que, apesar de, no documento de 46 páginas divulgado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, se reportar apenas o período judicial que vai de 2015 a 2016, já tenha dado em expulsões e um par de suspensões em situações arrepiantes tais como corrupção, desvio de fundos, fraude, nepotismo, chantagem, falsificação de documentos e abuso de poder e comercialização de sentenças. Por outras palavras, aquele documento descreve de forma fiel a podridão do sistema de Justiça, que sempre denunciámos aqui neste espaço.
Aquele documento responde à questão por que é a nossa Justiça tem sido implacável com os pilha-galinhas e distribui mordomias aos criminosos de colarinho branco. Como pode um juiz envolvido em desvio de fundos públicos aplicar-se num caso de desvio de fundos públicos, quando, na sua opinião e prática quotidiana, isso é um acto normal?
Como pode um juiz conferir integridade ao Estado, se usa da toga para falsificar documentos e para atribuir vantagens a si próprio, comercializando esses documentos falsos? Como pode um juiz garantir o combate à corrupção, se ele mesmo é um grande corrupto?
Portanto, mais do que congratular-se com as expulsões, a reflexão que deve ser suscitada pelo documento é sobre o que faz a magistratura judicial ou do Ministério Publico um terreno fértil para delinquentes. O que é que está a faltar no processo de selecção dos juízes. Por que é que as magistraturas, ressalvando algumas excepcionais e honrosas singularidades, se tornaram um cartel do crime organizado?
Na nossa modesta opinião, toda esta cruzada de desmantelamento da Justiça do Estado e a sua vulgarização não pode ser vista como um acidente do destino. Tudo começa com os critérios de elegibilidade, que foram todos adulterados sem qualquer tipo de pudor. Com que motivos? Exactamente para garantir que o grupo dirigente predador tivesse lá os seus representantes, por grau de parentesco ou por qualquer outro tipo de afinidade, a fim de lhe garantir impunidade absoluta.
É quase impossível na magistratura judicial ou administrativa ou do Ministério Público encontrar um representante que não tenha ligações ao cartel maior que administra o país desde a Independência.
E como a sua colocação fica em muito a dever-se à boa vontade desse mesmo cartel maior, então é óbvio que esses tais juízes sejam a reprodução do culto do banditismo.
Não há maneira de o sistema de Justiça garantir a impunidade a nível mais geral da sociedade se ele próprio não for, em miniatura, aquilo que se propõe defender.
É exactamente por isso que hoje temos uma Justiça a sornar, em estrita coordenação com o plano estratégico dos criminosos maiores.
Cabe na cabeça de alguém que, no caso das dívidas ocultas, por exemplo, tenha de ser o estrangeiro a vir ao nosso país ameaçar o corte de financiamento ao Orçamento se a Justiça não agir? Que tipo de Justiça é essa, senão ao serviço de interesses inconfessáveis? Se tem de ser o estrangeiro a vir fazer chantagem com cortes ao Orçamento para que haja justiça, então estamos conversados sobre esse tipo de justiça. Se tem de ser o estrangeiro a repudiar comportamentos desconformes, então do que nos serve a Independência e a soberania?
Não deixa curioso que esses mesmos ditos “patriotas”, que patrocinam a descredibilização do nosso Estado, sejam os primeiros a vociferar sobre soberania, uma soberania conveniente, que se dá bem com um sistema de Justiça sequestrado e inoperante. Assim, não devemos continuar. (Canalmoz / Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 24.04.2017

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