sexta-feira, 19 de maio de 2017

Licções dA democracia


Escrevi recentemente um texto que vai sair na próxima edição do boletim do CODESRIA. Traz o título “E se a democracia fosse o problema em África?”. Nesse texto reconheço o valor intrínseco da democracia, mas defendo a tese segundo a qual a ênfase que colocamos no seu valor instrumental – por exemplo, só com democracia é que pode haver desenvolvimento – não nos permite apreciar devidamente até que ponto a democracia, nos nossos países, pode ela própria ser o problema. Muitas vezes o desafio analítico ao estudarmos a política nos nossos países não consiste em fazer recurso à democracia para explicar algum falhanço qualquer, mas sim em explicar a própria democracia.
O problema é de ordem epistemológica, no fundo. Já escrevi sobre isto. Tem a ver com a forma como abordamos as coisas da nossa vida com recurso a um vocabulário inventado por outros para falar das suas próprias coisas. Não há mal nenhum nisso. Ou melhor, não há muito mal nisso. O mal vem quando não nos damos conta de que quando esse vocabulário chega até nós, ele vem como descrição de resultados, não de processos e, por isso, assume um carácter normativo. A democracia ilustra isso muito bem. A ideia de democracia que temos na cabeça é do seu lado funcional na Europa hoje. Não é de como a Europa chegou ao ponto onde se encontra hoje. Por isso, quando avaliamos as nossas coisas a tendência é sempre de dar nota zero porque o que fazemos não corresponde ao padrão normativo europeu.
O problema que tenho com esta maneira de olhar para as coisas é que ela não nos permite abordar o nosso país como ele merece ser abordado, isto é com sensibilidade para o processo. A nossa análise é quase sempre normativa. Estamos, por exemplo, a braços com o problema das “dívidas ocultas”. Uma boa parte do nosso interesse analítico vai para a questão da violação da constituição, para o interesse público em conhecer os detalhes do relatório da Kroll e para a responsabilidade criminal dos decisores políticos, questões sem dúvida importantes, mas que, em minha opinião, não nos ajudam muito. Usamos a democracia como um instrumento de medição e ficamos felicíssimos da vida quando concluimos que ou estamos aquém do que ela impõe, ou dentro dos limites razoáveis. Mas entender o país, e a própria democracia, isso não.
No Brasil estão a acontecer coisas interessantes. A democracia está a dar licções aos brasileiros e isso, curiosamente, chega até nós não como licções DE democracia, mas sim como licções DA democracia. Há diferença. Licções de democracia é aquela coisa de pensar a democracia a partir do fim, isto é a partir da sua forma ideal(izada). Licções da democracia é quando o próprio conceito vira problema e nos desafia a olharmos com maior profundidade para os processos que ela traz à superfície. Quando um país institucionaliza a denúncia – numa recriação cínica das “indulgências” católicas bem de acordo com uma nação “cristã” como o Brasil – ele não revela necessariamente maturidade democrática. Revela a podridão da cultura política e, isto é mais importante ainda, a forma como a referência à democracia numa sociedade como aquela produz práticas e lógicas sui generis. Estudar isso interessa mais do que discutir se esta ou aquela prática é mais democrática. Há um certo sentido em que a própria democracia pode inviabilizar um país.
Em Moçambique precisamos de prestar maior atenção ao processo por detrás do exercício da democracia. As “dívidas ocultas” não são apenas interessantes pelo que elas significam para aquele que acha que é democrata. Elas são interessantes porque mostram como a política real se faz e como um sentido normativo de democracia nos pode impedir de integrar isso na nossa apreciação do que os políticos fazem. Para mim, a hipótese de que o governo de Guebuza tenha agido de acordo com a sua interpretação do interesse nacional ainda não está descartada. Isso não põe de parte a possibilidade de um e outro, ou todos eles, terem querido tirar proveito pessoal da coisa.
Mas a minha questão está justamente aí! Parece-me analiticamente mais interessante tentar perceber isso, isto é que tipo de postura individual, compromissos individuais, mentalidades colectivas, lógicas institucionais, etc. tornam certas acções viáveis e legítimas aos olhos dos actores políticos. A referência à democracia não nos ajuda a entender isto. O contrário é que é válido. Precisamos de entender essas coisas para percebermos que democracia emerge no nosso contexto, o que é o mesmo que dizer que tipo de democracia é possível entre nós, por enquanto.
Na Grã-Bretanha isso não seria possível; na França o ministro tal já estaria na prisão; no Brasil o Tribunal Supremo divulgou as transcrições que comprometem o Presidente golpista, etc. Sim, mas e depois? Quem conclui a partir daqui que é por isso que o nosso país não anda não percebe que está a ser circular na sua análise. O nosso país não funciona porque nao funciona. Que processos locais produziram esse tipo de resultados na Grã-Bretanha, na França e no Brasil? Decididamente que não foi porque as pessoas lá estavam empenhadas em reproduzir o ideal de democracia nos seus países.
O valor intrínseco da democracia é importante e não está em causa. O valor instrumental, porém, é problemático. Sem nos darmos conta, participamos activamente na devolução do país aos que no passado ignoraram completamente os valores enunciados pela democracia que eles dizem ter inventado para nos colocarem numa situação em que a democracia é a explicação e solução para os nossos problemas ao mesmo tempo que ela é um dos nossos problemas. Assumimos o papel de caixas de ressonância. Vamos viver o resto das nossas vidas a repetir palavras que pensam por nós ao invés de inventarmos as nossas próprias palavras ou, ao menos, conferir novos significados às palavras que nos são impostas.

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