segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Angola não cede a pedido de Paul Ryan: Rafael Marques vai a julgamento


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O jornalista e ativista Rafael Marques vai a julgamento a 5 de março, por um artigo de 2016 que levantava suspeitas de corrupção contra o então PGR. O pedido de Paul Ryan não foi ouvido em Angola.
Joao Relvas/LUSA
O jornalista e ativista angolano Rafael Marques vai mesmo a julgamento por “ultraje a órgão de soberania e injúrias contra autoridade pública” na sequência de um artigo que escreveu em novembro de 2016 no jornal “Maka Angola”, no qual levantava suspeitas de corrupção sobre o então Procurador-Geral da República de Angola, João Maria Moreira de Sousa. Um mês depois da acusação do Ministério Público angolano, o presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Paul Ryan, apelou a que fosse retirada a acusação contra Rafael Morais e Mariano Lourenço (que publicou um follow-up do artigo no jornal que dirige, “O Crime”). Ao que o Observador apurou, o processo vai mesmo avançar e Rafael Marques até já foi notificado para depor no julgamento no dia 5 de março.
Tudo começou com a publicação do artigo “Procurador-Geral da República envolvido em corrupção”, de Rafael Marques, no ‘Maka Angola’, a 26 de outubro de 2016. Depois disso, Mariano Lourenço publicou um outro artigo com o mesmo assunto e um título idêntico: “Procurador-Geral da República acusado de corrupção”. A notícia descrevia que o PGR angolano teria alegadamente pagado um valor inferior por um terreno de três hectares considerado rural, mas que se destinava à construção de um condomínio em Porto Amboim, província do Cuanza. Ora, se iria ter um “uso urbano”, o valor pago deveria ter sido superior. O PGR da altura, João Moreira de Sousa, foi entretanto substituído por Hélder Pitta Grós em dezembro de 2017.
Na notícia existem várias críticas ao regime angolano, que o Ministério Público destaca no processo: “Ao longo do exercício da função de PGR, o general João Maria Moreira de Sousa tem demonstrado desrespeito pela Constituição, envolvendo-se numa série de negócios (…) Nesse seu comportamento, tem contado com o apadrinhamento do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, que lhe apara o jogo. Aqui se aplica o princípio informal e cardeal da corrupção institucional em Angola, segundo a qual uma mão lava a outra.”
No processo, ao qual o Observador teve acesso, o Ministério Público admite que João Moreira de Sousa obteve o título de concessão de direito de superfície daquele terreno em maio de 2011, mas que o perdeu a favor do Estado um ano depois por “falta de pagamento dos emolumentos”. Os procuradores angolanos reconhecem que os jornalistas “têm o dever de investigar qualquer facto, para posterior divulgação ao público geral”, mas acrescentam que “ao dever de informar cabem critérios de objetividade e verdade”. E depois tentam dar uma lição de jornalismo: “Como qualquer outra profissão, no jornalismo imperam igualmente os princípios da ética e deontologia profissional, sendo que a violação de qualquer um deles importa a aplicação de sanções, que traduzem-se em responsabilidade civil, disciplinar e/ou criminal”.
Seis dias depois da acusação,  a 26 de maio de 2017, Paul Ryan apelou ao fim das acusações contra Rafael Marques e Mariano Lourenço.
A liberdade de expressão é uma forma básica de controlo da corrupção. Deixem cair a acusação contra Rafael Marques de Morais e Mariano Brás Lourenço”, escreveu Paul Ryan num tweet publicado a 26 de junho de 2017.
Havia a expectativa de que, com o novo Presidente João Lourenço, acabassem os julgamentos de jornalistas. Em novembro de 2017, durante a cerimónia de tomada de posse dos novos conselhos de administração dos órgãos de comunicação social públicos, João Lourenço afirmou mesmo: “Não há democracia sem liberdade de expressão, sem liberdade de imprensa. Direitos consagrados na nossa Constituição e que o executivo angolano, primeiro do que quaisquer outras instituições do Estado angolano, tem a obrigação de respeitar e cumprir”. Isto, apesar de dizer que os administradores deviam definir uma linha editorial “que sirva de facto o interesse público”.

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA ENVOLVIDO EM CORRUPÇÃO

O procurador-geral da República, general João Maria Moreira de Sousa, é concessionário de uma parcela de terreno de três hectares para a construção de um condomínio residencial com vista para o mar, no município do Porto-Amboim, província do Kwanza-Sul. É certo que, provavelmente, a crise económica vai pôr na gaveta os planos imobiliários do PGR, mas isso não invalida que se levantem questões fundamentais acerca da probidade do principal magistrado responsável pelo zelo da legalidade no país.
A 25 de Maio de 2011, conforme documentos em posse do Maka Angola, o general João Maria Moreira de Sousa assinou, na qualidade de superficiário, o contrato de concessão do direito de superfície do referido terreno, na localidade de Tango, sob o processo nº 144-K/11: “Uma parcela de terreno rural, com a área de 3HA (hectares), para a construção de um condomínio, no lugar denominado Tango, comuna sede, município do Porto-Amboim (…).” O terreno situa-se junto ao Hotel Diamond, à entrada da vila do Porto-Amboim.
O procurador-geral teve de pagar apenas 600 mil kwanzas pelo terreno, porque este foi considerado rural, ainda que se destinasse a uso urbano.
A 10 de Outubro, o Maka Angola enviou ao general João Maria de Sousa 13 perguntas, para que ele se pronunciasse sobre o negócio do condomínio que pretende construir no Kwanza-Sul e sobre a forma como obteve diretamente o terreno, durante o exercício do cargo de PGR. O magistrado ignorou a correspondência que recebeu, e não respondeu. O Maka Angola publica agora, no final deste texto, as referidas questões.
A Constituição atribui à PGR a representação do Estado no exercício da acção penal, da defesa dos direitos pessoais e da defesa da legalidade. A mesma Constituição refere que o cargo de PGR é incompatível com o exercício de outras actividades.
Segundo o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, o que está em causa é a violação do “princípio da dedicação exclusiva” estabelecido pela Constituição. Esse princípio impede que os magistrados judiciais e do Ministério público exerçam outras funções públicas ou privadas, excepto as de docência e de investigação científica de natureza jurídica.
“A lei é muito clara: qualquer actividade de natureza privada está vedada ao PGR. Apenas se autoriza o ensino e a investigação científica, desde que não afectem o serviço, o que aliás nem será concebível para um procurador-geral da República. Serviço não lhe falta”, explica Rui Verde.
O analista afirma que o princípio de exclusividade se prende com a salvaguarda do princípio de autonomia do PGR “enquanto elemento pessoal de Direcção do Ministério Público, o qual só pode receber instruções do presidente da República naquilo que se refere à representação do Estado”. E aqui se coloca uma questão pertinente: o general João Maria de Sousa terá recebido instruções do presidente José Eduardo dos Santos para se dedicar ao negócio imobiliário?
“O sentido do princípio está não apenas em impedir que o PGR se disperse por outras actividades, pondo em risco a sua função, mas também em evitar que ele crie dependências profissionais ou financeiras que ponham em risco a sua autonomia”, assevera Rui Verde.
A autonomia obriga o PGR a vincular-se a critérios de legalidade e objectividade, e a incompatibilidade dos magistrados tem como objectivo, em boa parte, não criar dependências financeiras.
O analista jurídico sublinha que qualquer actividade para além da magistratura e da docência ou investigação científica na área do direito, com o propósito de dela auferir proventos ou remunerações, é manifestamente proibida.
“O PGR pode comprar um terreno para edificar uma casa para ele e para a sua família. Pode comprar um automóvel, pode comprar um barco”, esclarece o analista. “Não pode é dedicar-se a outras actividades que impliquem ou sejam similares a uma actividade profissional e das quais queira obter uma remuneração: promotor imobiliário; consultor jurídico de privados; administrador de empresas; comissionista de negócios, fazendeiro, etc.”, remata.
PGR useiro e vezeiro
Ao longo do exercício da função de PGR, o general João Maria de Sousa tem demonstrado desrespeito pela Constituição e pelas leis vigentes no país, envolvendo-se numa série de negócios. Nesse seu comportamento, tem contado com o apadrinhamento do presidente da República, José Eduardo dos Santos, que lhe apara o jogo. Aqui se aplica o princípio informal e cardeal da corrupção institucional em Angola, segundo a qual “uma mão lava a outra”. Os corruptos protegem-se entre si, e a magistratura serve apenas para conferir um ar de legitimidade aos corruptos, além de punir os mais fracos e aqueles que se pretende excluir.
A 13 de Agosto de 2009, endereçámos uma carta ao presidente da República denunciando a actividade empresarial do PGR. Também aqui, não obtivemos resposta.
Essa actividade empresarial passava pela empresa Imexco, na qual o PGR desempenhava a função de sócio administrador. O presidente do Tribunal Supremo Militar, general António Neto “Patonho”, também é sócio da mesma empresa.
O procurador-geral da República prestava também, na altura, assessoria jurídica, consultoria e auditoria privadas através da sua empresa Construtel, Lda. Para além da Deljomar Lda., dedicada à construção civil e ao comércio geral, na qual integrava a Assembleia-Geral, o PGR exercia cumulativamente a função de gerente da Prestcom – Prestação de Serviços e Comércio Geral, Lda.
Na carta ao presidente, escrevemos, e agora reiteramos: “A falta de medidas contra os indivíduos que abusam dos seus cargos para enriquecimento pessoal pode fragilizar Vossa Excelência, expondo-o como principal responsável pelos males causados à sociedade angolana por abusos de poder, corrupção, má gestão e saque do património do Estado.”
Vista sobre o terreno onde o PGR pretende construir condomínio
Vista sobre o terreno onde o PGR pretende construir condomínio privado










À PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
PALÁCIO DA JUSTIÇA
LUANDA
DIGNÍSSIMO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
GENERAL JOÃO MARIA MOREIRA DE SOUSA
Assunto: Pedido de esclarecimentos sobre negócio privado do PGR

Rafael Marques de Morais, vem, na qualidade de jornalista, apresentar ao Procurador-Geral da República um questionário respeitante aos factos abaixo descritos.
No sentido de garantir a liberdade de expressão, de informação e de contraditório, considerando a concessão que V. Exa obteve do Governador da província do Kwanza-Sul, Serafim Maria do Prado, em 25 de Maio de 2011, referente a uma parcela de terreno rural de três hectares para construção de um condomínio no lugar denominado Tango, Comuna Sede, Município de Porto Amboim, vimos colocar as seguintes questões:
  1. O contrato de concessão refere-se a um terreno rural. O título de concessão refere-se a terreno suburbano. Qual a verdadeira natureza do terreno que lhe foi concedido? Qual é a base legal para existir “um terreno rural para construção de condomínio”? Não se trata de uma contradição nos termos?
  2. O valor da propriedade (600.000 kwanzas) foi calculado tendo por base a classificação de terreno rural? Considerando que está a ser construído um condomínio no terreno, não deveria este ser avaliado como urbano e, portanto, com um valor muito mais elevado?
  3. O terreno estava desocupado ou foi preciso utilizar a força para tomar posse do mesmo?
  4. Em que fase se encontra a construção do condomínio?
  5. Já foram vendidos lotes ou apartamentos do condomínio?
  6. Qual a ligação da concessão e da construção do condomínio ao exercício das funções de Procurador-Geral da República?
  7. Não vigora para o exercício do cargo de Procurador-Geral da República o princípio da dedicação exclusiva?
  8. Não proíbe a lei expressamente que o Procurador- Geral (aliás, qualquer Procurador) exerça qualquer outra função pública ou privada, excepto a docência ou investigação científica (desde que não prejudique o serviço)?
  9. Receber terras e construir um condomínio é uma actividade de docência ou de investigação científica?
  10. Empreender a construção de um condomínio não coloca o Procurador-Geral dependente de financiamentos, perturbando a sua independência?
  11. Não considera o Procurador-Geral que, ao desenvolver negócios privados no imobiliário, está a violar a lei e o princípio da dedicação exclusiva?
  12. Estando a violar a lei, e como principal garante da legalidade em Angola, não deveria demitir-se?
  13. Tendo em conta que recebeu a concessão de um terreno de um governador com o fim de aí construir um condomínio, está disponível para pedir a nomeação de uma Comissão de Inquérito que investigue a sua actuação?

Com os meus cumprimentos,

Luanda, 10 de Outubro de 2016

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